O dia surgiu limpo e claro para os olhos da pequena Janine, que empolgadíssima, levantou num sobressalto e sorriso largo para seu primeiro dia de aula na nova escola.
Janine é uma menina de dez anos de idade, de lindos cabelos crespos e tão negros quanto uma noite de primavera que sobem por sua cabeça e moldam seu redondinho rosto num belo corte ao estilo afro. Janine é estudiosa, dedicada, atenta ao mundo onde vive, sonhadora como são todas as crianças e de inteligência incomum, capaz de envolver e aturdir qualquer pessoa disposta a ouvi-la.
A menina disposta e alegre entra no ônibus, olha para os assentos e começa a perceber algo, talvez isso será sua bandeira, seu projeto de vida, sua luta. Os únicos lugares vagos são os últimos assentos, ela olha para o lado onde havia um menino mais velho e tenciona sentar-se ao seu lado, o garoto à fita de cima a baixo, torce os lábios numa proposital insatisfação com as pretensões da menina e mais que depressa salta do assento e põem-se em pé, indo para perto dos alunos sentados mais a frente.
Janine do alto de seus apenas dez anos, entende naquele momento que não era bem-vinda, por algum motivo ainda desconhecido, ela sentira pela primeira vez as limitações do seu espaço, as regras impostas pela sociedade, sentiu a fúria nos olhos da humanidade refletida no rosto de outra criança. Janine viu naquele momento que o mundo era um lugar assustador e sua mãe não havia lhe contado nada sobre isso.
Essa história é uma ficção, mas obviamente já aconteceu. O processo de
“descriançar” ocorre muito cedo na vida das pessoas negras. Algumas ainda na barriga de suas mães, por terem a pele escura recebem menos anestesia na hora do parto, com uma justificativa débil de suportarem mais a dor, justamente por serem descendentes de um povo forte e de uma cultura vultuosa.
Deixam de ser crianças quando aos onze anos engravidam de um canalha, nojento e detestável, não obstante, uma juíza impede o aborto de forma legal, possivelmente por ter uma opinião igualmente nojenta, onde uma vida será gerada mesmo que a outra seja usurpada, mesmo que o trauma nunca saia, mesmo que o estupro além de físico, seja também psicológico.
É inacreditável o debate sobre aborto nessas circunstâncias. É inadmissível uma sociedade querer discutir algo abominável. Quem abre um debate assim, certamente não faz ideia das condições de vida de muitos seres humanos. Não conhece as realidades de uma periferia, de pessoas vivendo em condições abaixo da miséria, sem saneamento e nenhum apoio de governos, a não ser uma miserável bolsa assistencial que nada mais é do que um projeto eleitoreiro.
Sob essas perspectivas, entendo o tamanho do buraco onde meteram-se os brasileiros, uma sociedade soberba, de raízes paternalistas, capaz de desprezarem tudo o que acharem não patriótico, como se não fossem brasileiros aqueles com uma visão de mundo voltada para os seres humanos, para as angustias e o sofrimento alheio. O Brasil é um país de diversidades, no entanto tudo que não se encaixar, tudo invariavelmente rejeitado, será essencialmente destruído pelo ser humano. Ideais,
vidas e sonhos estão inclusas neste horrente destino.